O blockchain é uma das tecnologias da era digital que tem potencial para transformar a cadeia de meios de pagamento, uma das principais dores de cabeça de bancos centrais mundo afora. As aplicações dessa tecnologia disruptiva, no entanto, vão muito além das criptomoedas e da capacidade de certificação de transações comerciais, tanto online como offline. É possível, por exemplo, que o blockchain altere profundamente modelos tradicionais de governança e gestão, permitindo níveis de descentralização e agilidade impensáveis há alguns anos.
Blockchain para criar Organizações Autônomas Descentralizadas
Um grupo de pesquisadores liderado pelo professor assistente de estratégia e empreendedorismo da Universidade de Indiana, Matt Josefy, baseou-se na Teoria da Firma de Jensen e Meckling – que trata dos conflitos de interesse entre acionistas e gestores, os chamados problemas de “agência” – para propor possibilidades de transformar o tradicional modelo hierárquico de comando e controle das organizações em um formato disruptivo de Organizações Autônomas Descentralizadas (DAO, na sigla em inglês).
Organizações tradicionais sofrem, em maior ou menor escala, dos problemas de“agência”, ou seja, incorrem em custos para que os acionistas alinhem e incentivem os gestores a agir de forma a maximizar o valor da empresa e os monitorem para garantir tal comportamento. Os gestores, por sua vez, têm seus próprios interesses pessoais eventualmente em conflito com os objetivos dos acionistas. Esses custos são oriundos dos “contratos internos” estabelecidos no modelo de gestão, principalmente devido à maior hierarquia e sistema de bonificação por desempenho, e do monitoramento necessário (maior burocracia e custos de auditoria) para se minimizar a assimetria de informação entre os acionistas e os gestores.
Utilizando-se blockchain e os mecanismos de contratos inteligentes – como as transações mais complexas permitidas pelo blockchain Ethereum, rede de cadeia de bloco pública distribuída que se concentra na execução de código de programação aplicações descentralizadas –, é possível transacionar valores e realizar ordens quando certas condições são atendidas.
A partir dessa aplicação, pode-se extrapolar que determinados controles e processos de gestão de empresas tradicionais possam estar sujeitos ao ordenamento, tratamento e encriptação similar a uma transação via blockchain. Assim como já há dezenas de aplicações para transações complexas entre pessoas e empresas, como aluguel automático (slock.it), certificação de identidade (uport.me) e controles de cadeias de suprimento (provenance.org), seria um passo natural a adoção dos contratos inteligentes via blockchain para redefinir transações, processos, estruturas organizacionais e controles dentro das empresas.
Como realizar essa transformação
Essa transformação pode ocorrer principalmente de duas maneiras. A primeira e mais importante delas é a descentralização gradual da tomada de decisão, ao passo que os contratos inteligentes possam, aos poucos, substituir a decisão centralizada dos gestores.
Desta forma, a descentralização acontece uma vez que os contratos inteligentes, via blockchain, passam a determinar certas ações em vários níveis das organizações que antes eram decididas por gestores centrais. Assim, efetivamente, transformam-se as estruturas tradicionais em organizações autônomas descentralizadas.
A segunda transformação é a minimização dos custos de monitoramento. Há grande assimetria de informação entre os acionistas e os gestores, podendo levar estes a comunicar uma visão distorcida do real desempenho da empresa. Eles podem, por exemplo, eventualmente impor viés pessoal ou corporativista a análises e conclusões imunes a processos tradicionais de controladoria, que sempre contém certo grau de subjetividade, e mesmo auditorias, que não são infalíveis.
Além disso, a assimetria de informação incentiva perversamente os gestores a perseguir estratégias de expansão e diversificação que a intensifica, garantindo posição e remuneração vantajosa. Nesse sentido, a aplicação de blockchain em contratos inteligentes pode aumentar significativamente o grau de confiança e granularidade das informações operacionais – agora ordenadas, transparentes, incorruptíveis e encriptadas –, podendo no limite eliminar os custos de monitoramento tradicionais, como controladoria e auditorias.
Desse modo, portanto, o blockchain pode ser uma poderosa ferramenta de transformação de modelos de governança e gestão, viabilizando a tão almejada, mas dificilmente alcançada descentralização com autonomia de equipes, unidades de negócio e, eventualmente, organizações inteiras na era digital.
Escrito por Clau Sganzerla – Vice-Presidente de Estratégia e Inovação do grupo Algar
Fonte: Revista HSM